top of page

As Palavras das Estórias

Romances

1995 - Dupla Imagem 

1997 - Batendo Contra a Vidraça

Contos

1995 - Carlota e Outras Histórias de Mulheres 

1998 - Colectânea de Contos Tristes

2014 - O Grito da Coruja

2014 - O Viajante

"Cada móvel, cada recanto, até o próprio ar estavam cheios da sua presença. A forte e agreste personalidade da mãe sempre dominara tudo e todos. O avô Ernesto, seu saudoso companheiro de brincadeiras infantis, tinha sido, sem sombra de dúvida, quem mais sofrera com o difícil carácter da mãe. Este encolhia-se sempre que ela lhe dirigia a palavra, não havia qualquer assunto de que lhe não desse conhecimento e o que quer que ela decidisse funcionava como uma lei. Pensando agora nisso, Hugo concluía que o facto do avô depender economicamente da sua mãe não era explicação suficiente para tal comportamento." - in Dupla Imagem - 1995

"Sinto as costas doridas e retesadas, todos os músculos parecem ter-se tornado num bloco único, duro e rígido. Procuro descontrair-me e inspiro profundamente, mudando de posição.  Já falta pouco, digo a mim própria, tentando ganhar novo ânimo. Não estou habituada a conduzir tantas horas seguidas, normalmente sou acompanhante e, em viagens maiores, costumo, mesmo, fazer umas boas sonecas.

Viajar sozinha é, para mim, uma experiência nova que não sei se de facto aprecio. É algo estranho, o isolamento que um condutor solitário pode sentir. 

Durante todo o caminho aproveitei, embalada pelas músicas suaves de uma rádio um pouco nostálgica, para reflectir sobre o que tem sido a minha vida. Como tenho aproveitado as oportunidades que se me têm deparado, que opções tenho feito, o que realizei, o que consegui atingir com o meu manancial de faculdades. Infelizmente, a conclusão a que cheguei não foi simpática e não abonou grandemente a meu favor. Pareço ter-me deixado levar pelas situações, indo com a maré, sem me questionar de facto se é por ali que quero ir.

Concluo que a decisão de fazer esta viagem talvez seja uma boa paragem para repensar a minha atitude perante a vida e os outros, perante mim própria.

Sempre ouvi dizer que é aos trinta anos que a mulher está no seu auge, já não é criança, nem jovem estouvada, mas ainda não envelheceu, é uma mulher madura, o seu corpo encontra-se ainda pleno de juventude e o seu espirito já detém alguma sabedoria. É como atingir o cume de uma montanha. Depois, a viagem será sempre um processo descendente. Até hoje, sinceramente, nunca tive curiosidade de tentar descobrir se isto correspondia ou não à verdade." In Carlota e Outras Histórias de Mulheres -Marta e Maria - 1995

A tarde ia a meio, o sol descia por de trás da serra e, lentamente, o manto negro das sombras cobria a encosta.
Estava frio, para aquela época do ano. O céu escurecia assustadoramente, as esparsas nuvens, que antes pairavam sobre a montanha, corriam, agora, velozmente, para o cume, avolumando a imensa massa cinzenta chumbo. Adivinhava-se chuva ou até tempestade.

O homem, de feições boçais e olhar estagnado, caminhava vagarosamente, sem destino aparente. O rouco grito da Coruja atroou os ares. Por um momento, o homem estacou, o seu rosto boçal contorceu-se num esgar de pavor, lançando-se em seguida numa corrida desordenada, como se não controlasse os próprios membros.
Ofegando, pesadamente, juntou-se a um grupo de gente que estava a trabalhar nas hortas.
Boas, Toino, foi murmúrio geral. Mas, Joaquim, que se encontrava mais próximo,  apercebeu-se do arfar ruidoso e da expressão aterrorizada do recém-chegado.
Ó Toino, parece que viste bicho! - exclamou Joaquim.
- A Cru.... cru... cruj...cruj,,, - gaguejou Toino.
- Q'é que tu.. - ia Joaquim a dizer, quando foi interrompido por um novo e estridente grito de coruja. - In o Grito da Coruja - 2014

"A Baixa fervilhava de agitação e vida.   A Rua Augusta ostentava um ar festivo com as iluminações alegóricas à quadra natalícia. As montras das lojas tinham sido transformadas num mundo tentador para os passantes. Nelas faiscavam bolas vermelhas, douradas e prateadas, azuis e verdes. Pinheiros grandes e pequenos, naturais ou estilizados, quedavam-se imponentes, submersos numa profusão multicolor de fitas e laços que, em conjunto com os artigos expostos em delicada harmonia ou intencional desalinho, formavam um todo mágico que remexia com o imaginário quimérico dos potenciais compradores. 

António, carregado de embrulhos e com um sorriso nos lábios, não se deixou impressionar pelo que se passava à sua volta, circulava calmamente por entre a multidão de gente que caminhava apressada, de um lado para o outro. As expressões nos rostos daquela massa humana eram, na sua maioria, graves e até irritadas. Choros e gritos de crianças faziam-se ouvir, de quando em quando, em protestos de cansaço, incompreensão e algum desconsolo, pouco condizente com o ambiente que as rodeava.

Anoitecera já há algum tempo. António afastou segura e conscientemente a sensação de angústia, fugaz, mas intensa, que o envolveu. Esta era uma velha conhecida sua, com a qual se habituara a viver e que sempre o acometia quando se encontrava no meio de muita gente, em locais públicos que não costumasse frequentar, principalmente se fosse de noite.  Estugou o passo e dirigiu-se para o parque de estacionamento, procurando afastar-se, o mais depressa possível, daquela profusão de pessoas, luzes e sons que o atordoava." - in Batendo contra a vidraça - 1997

"O cigarro consumia-se-lhe lentamente entre os dedos, deixando escapar uma espessa, branca e fina língua de fumo.

O olhar vago, perdido algures; os maxilares fortemente apertados; a ruga forte entre as sobrancelhas; os dedos crispados apertando violentamente o tecido gasto do sofá; a posição incómoda e hirta do seu corpo; tudo nela deixava transparecer uma revolta contida, uma raiva surda, uma dor muda mas violenta.

Alheadamente, a mulher olhou em redor. A sala, que fora bonita e bem decorada, quando ela, ingenuamente, acreditava ainda que o casamento era a garantia máxima de atingir algo muito próximo da felicidade, não passava agora de uma divisão triste, amarelecida e gasta pelo tempo. Todos os objectos, outrora belos, elegantes ou delicados, jaziam tristes, revelando sinais de abandono e negligência.

Então, deu-se conta de que toda a casa parecia moribunda, não por se encontrar decrépita, mas porque parecia ter acompanhado a degradação emocional e psicológica de quem lá vivia ou tinha vivido.

As casas, conjecturava ela, são objectos inanimados enquanto estão a ser construídas ou não são habitadas de uma forma regular, pelas mesmas pessoas, mas, no momento em que passam a ser o lar de alguém, adquirem uma vida e uma personalidade à imagem dos seus ocupantes.  Elas reflectem não só os gostos pessoais e as possibilidades económicas de quem lá vive, mas, também e principalmente, a sua felicidade ou infelicidade. Dá-se como que uma simbiose entre a casa e os seus moradores e o seu ar é fresco ou pesado, triste ou alegre, vivo ou moribundo, tal como o deles.

O terceiro andar, direito, da Rua das Tílias, estava moribundo." - In Colectânea de Contos Tristes - A Espera - 1999

"João vagueou, por três longos anos, pela contrastante e misteriosa Ásia.

Viajou a pé, de barco, à boleia, a cavalo, de camelo, em transportes periclitantes, pejados de gente e animais.

Conheceu gente extraordinária e tomou contacto direto com diferentes e estranhas culturas e tradições, novas e místicas filosofias e religiões.

Para sobreviver, trabalhava ocasionalmente, ou pernoitava e comia algumas refeições em casa destes e daqueles, que se cruzavam no seu caminho, normalmente, a troco de qualquer trabalho de que necessitassem.

Não lhe era difícil arranjar trabalho, a troco de dinheiro, ou abrigo e alimentação, pois, se já antes de se ter tornado viajante, tinha várias competências e habilitações, os seus muitos dias de viagem e contactos com outros povos e culturas diferentes deram-lhe muitíssimas mais.

Com seu pai trabalhara como carpinteiro, canalizador, eletricista ou pintor. A sua formação académica habilitara-o para ensinar física ou matemática em qualquer parte do mundo. Os trabalhos de verão deram-lhe experiência, como empregado de mesa ou balcão, nadador-salvador ou instrutor de surf, pelo que, com grande facilidade, conseguia realizar qualquer coisa de que os outros tivessem necessidade." - In O Viajante - 2014

bottom of page